martes, 19 de octubre de 2010

Viajar, comer, viver

Sempre demos risada da minha avó pela quantidade obscena de comida que ela costuma fazer e colocar em nossos pratos. Festas em familia e reuniões em sua casa são sinônimos de comilança sem tamanho seguida daquela depressãozinha típica que acompanha a barriga estufada. Assim, acreditava eu que já estava devidamente preparada para o que me aguardava gastronômicamente em minha viagem para sua terra natal.
 Pois para minha surpresa, descobri que os longos anos de Brasil já domaram, e bastante, os hábitos alimentícios de minha familia no que diz respeito à quantidade. Passei 6 dias sem sequer sentir fome, e no entanto não parei de comer. E mesmo quando tentava dar um basta, não era possível. Afinal não sentir fome em qualquer hora do dia é algo inconcebível.
Para os que pensam em vir futuramente, vai um dicionário de significados:
-          Dizer “No puedo más”, significa “Sim, por favor, quero mais uma porção bem generosa”
-          Dizer “Muy bien, como uno más”, significa “Certo, vou repetir mais 3 vezes”
-          Dizer “No tengo hambre” significa “Quero mais opções de comida do que as que estão expostas na mesa”
-          Dizer “En serio, es que no tengo hambre, ni un poquito” pode significar:
a)      Não gosto da sua comida (o que é o maior insulto da vida)    ou
b)      Ponha comida AGORA no meu prato
Tive mais convites para comer do que dias para ficar. As pessoas são muito generosas, queriam me receber bem, que lhes fizesse uma visita. E não pode haver visita, sem comida. Numa destas visitas comi “fritada de conejos”, um prato que amo imensamente. Não só havia a fritada, mas também uma mesa de embutidos (jamón, chorizo, morcilla…), salada e tortilla de patata, tudo muito apetitoso. A prima me serviu, acho que tinha um coelho inteiro no meu prato. Estava maravilhoso, ela cozinha divinamente. Comi até o final com muito esforço, para não fazer feio. Ao terminar, me diz a prima “Echate un poco más, no has comido nada”, e em seguida já virou uma colher com mais 4 pedaços no meu prato. Ao terminarmos de vez- me sentindo como uma bola prestes a sair rolando – ela observa que nem toquei na tortilla…. Passamos umas duas horas conversando, o almoço ainda na barriga. Me perguntam se não quero magdalenas com café. Digo que não, não tenho fome, o que é respondido por uma cara que é um mixto de dor e descrença. Começo a rir, abraço a prima querida e tento convencê-la de que realmente não preciso comer.
Em outra ocasião fui levada para almoçar em vilarejo muito bonito na costa. Uma vila de pescadores, uma jóia do mediterrâneo. Comi lulas, salada, batata frita, mexilhões e mais 3 tipos de peixe. No final até os gatos, que parecem ser a fauna nativa de Almería devido a sua abundância, disfrutaram dos anéis de lulas à dore que ninguém agüentava mais comer, ainda que fossem uma iguaria dos deuses. Vocês imaginam como eu devia estar absolutamente empanturrada para não conseguir comer mais 5 anéizinhos de lula suculentos…. E ainda teve sobremesa. A viagem de volta à Almería (capital) não tardou mais que uma hora e assim que chegamos no apartamento, a tia perguntou: “quer comer uns figos e uns docinhos de Armuña?”….
Num outro jantar, havia muitas opções para “picar” como eles dizem aqui, para petiscar- lulas, jamón, salada de romã e outras gostosuras. Fui colocando tudo aos pouquinhos no prato e provando, pois ainda estava satisfeita com o lauto almoço que me havia sido servido horas antes. A tia me olha e diz: “A mí no me gusta echarle comida a nadie, pero si no vas a comer nada, yo lo haré”.
Eles sabem que a comida que fazem e servem, é muito boa. Compartilhá-la  é sinal de afeto, ainda que tenhamos que comer até cair.
Diversas vezes dei gargalhadas por conta desse exagero tão bonitinho. Mas o mais surreal veio na hora da partida… Balanço total: 1,5 quilos de amêndoas recém colhidas, um cacho de uva tão grande que enchia uma sacolinha de supermercado, 12 barrinhas de sabonete artesanal feito com azeite extra-virgem e ervas colhidas no campo, 2 potes de pêssego em calda caseiro e por fim 15 litros de azeite artesanal puríssimo, extraído das azeitonas armunhenses. E ainda queriam me dar figos. Óbvio que não trouxe tudo isso para Madrid, senão ainda estaría empacada na porta do trem. Me senti como o pessoal do ceasa, trazendo produtos frescos do campo para a cidade. Dos 15 litros de azeite, só trouxe 7 e as uvas ficaram para trás também. O azeite está fazendo o maior sucesso aqui em casa. Uma das compis, ao prová-lo disse “¡Pero eso viene con la aceituna junto!”. De verdade, é o melhor azeite que já comi em toda a minha vida, não tem igual. Um dos potes de pêssego já foi devidamente consumido por nós acompanhado de chantilli. E as amêndoas, bem… são consumidas diariamente. Hoje por exemplo, fiz almôndegas recheadas com amêndoas cobertas com molho de tomate fresco (nada de latinha!). E domingo foi risoto de aspargos com amêndoas e queijo brie. As receitas fizeram sucesso, recebi elogios e pedidos para ensiná-las.
O duro foi chegar às 11:30 da noite com uma mochila pesada, uma bolsa estufada, um casaco e uma sacola com 7 litros de azeite que rasgou no caminho. Ao entrar desengonçadamente na Calle de Espartinas, desatei a rir. Vi a cena se repetindo pela segunda vez. Dessa vez, pelo menos tinha as chaves.

4 comentarios:

  1. Uma pergunta: não tem alternativa pra quando se quer expressar que realmente não se quer comer mais sem ofender e fazê-los achar que não gosta da comida???

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  2. Eu geralmente não uso nenhuma das opções que você citou. A minha opção favorita é: "manda mais!"
    Você pode refilmar o filme da Julia Roberts com o título "Comer, comer, comer".

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  3. Comida pra mim sempre foi sinal de afeto, uma das primeiras coisas que aprendi...rs. Mas, mesmo sendo uma glutona confessa, também acho um exagero isso tudo. É difícil manter a boa forma sem se passar por mal educada.

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